O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência
A partir do livro INFERNO e de fragmentos da peça UM SONHO de August Strindberg
Eleito o 2º melhor Espetáculo Teatral de 2013 em avaliação de críticos teatrais no Guia da Folha de São Paulo
Ficha Técnica
Direção e Adaptação André Guerreiro Lopes
Elenco Helena Ignez, Djin Sganzerla, André Guerreiro Lopes e Eduardo Mossri.
Concepção Sonora e Música ao Vivo Gregory Slivar
Cenário e Vídeografismo Ateliê La Tintota
Leonardo Ceolin, Carlos Pedreanez e Flávio Lima
Iluminação Marcelo Lazzaratto
Figurinos e adereços Sonia Ushiyama
Assistente de direção Rafael Bicudo
Caracterização Westerley Dornellas
Filmes O Voo de Tulugaq e Lobo André Guerreiro Lopes
Cenário Um Sonho Beto Mainieri
Figurino Agnes Simone Mina
Fotos do espetáculo Gabriel Chiarastelli, Jennyfer Glass, Felipe Stucchi
Operação de luz Juarez Adriano
Operação de vídeo Renato Garcia
Cenotécnico Mateus Fiorentino
Assessoria de Imprensa Frederico de Paula – Nossa Senhora da Pauta
Produção executiva Joyce Nogueira
Direção de Produção Djin Sganzerla
Elenco Helena Ignez, Djin Sganzerla, André Guerreiro Lopes e Eduardo Mossri.
Concepção Sonora e Música ao Vivo Gregory Slivar
Cenário e Vídeografismo Ateliê La Tintota
Leonardo Ceolin, Carlos Pedreanez e Flávio Lima
Iluminação Marcelo Lazzaratto
Figurinos e adereços Sonia Ushiyama
Assistente de direção Rafael Bicudo
Caracterização Westerley Dornellas
Filmes O Voo de Tulugaq e Lobo André Guerreiro Lopes
Cenário Um Sonho Beto Mainieri
Figurino Agnes Simone Mina
Fotos do espetáculo Gabriel Chiarastelli, Jennyfer Glass, Felipe Stucchi
Operação de luz Juarez Adriano
Operação de vídeo Renato Garcia
Cenotécnico Mateus Fiorentino
Assessoria de Imprensa Frederico de Paula – Nossa Senhora da Pauta
Produção executiva Joyce Nogueira
Direção de Produção Djin Sganzerla
SOBRE A MONTAGEM
ALQUIMIA COLETIVA
O Inferno de Strindberg não é um livro, não é vivido pelo leitor como um livro, mas sim como uma experiência”, escreveu o cineasta Píer Paolo Pasolini. Para mim essa experiência foi corporal, o livro me tomou fisicamente. E virou uma obsessão.
A jornada absolutamente pessoal do autor nas páginas de Inferno é a faísca, a ignição de nossa engrenagem teatral. No palco, a mistura de linguagens, as metamorfoses, os objetos indefinidos, as ações cíclicas, formam um todo, um grande labirinto visual e sonoro que, esperamos, ilumina a beleza, a poesia e o desespero de um momento de suspensão: o artista que abandona sua zona de segurança e se lança ao desconhecido, em uma jornada incerta.
“Tudo envelheceu, desejo tudo ignorar, deixar em suspenso as perguntas e ficar à espera.” escreve Strindberg em determinado momento de sua saga. Ou quando analisa um casulo ao microscópio: “Como é possível? A lagarta morre no casulo e mesmo assim está viva e ressuscita em outra forma, de maior beleza, maior elevação, maior liberdade. Portanto que é a vida, que é a morte? A mesma coisa?“
A analogia do casulo, o ir ao limite da experiência, a coragem de vivenciar a morte (de ideias, paradigmas, certezas) para gerar a metamorfose, não seria uma imagem síntese desta “crise inferno”? Ou da jornada de todo artista verdadeiro?
Parceiros de longa data do estúdio lusco-fusco aqui se reencontram e novas parcerias se formam para esta alquimia coletiva. E não faltam espelhamentos. Fragmentos de Um Sonho, peça que criamos há quase sete anos (e que Strindberg escreve cerca de sete anos após a crise inferno) surge aqui como ruínas, a evocação simultânea de um passado e de um futuro. Em cena também uma homenagem a meus mestres Steven Wasson e Corinne Soum do Theatre de l’Ange Fou, em uma peça corporal que fala de paranóia. Extratos de filmes que dirigi. Fragmentos de outros cenários, recontextualizados. Helena, com sua trajetória singular, parceira poético-cine-teatral. Gregory, colaborador antigo, com sua alquimia sonora única. O talentosíssimo Eduardo, novo velho parceiro. Lazarratto, amigo de tantos encontros artísticos pulsantes, que nos empresta sua luz. Sonia e sua inteligência cênica. Leo, Carlito, Flávio, Rafa, Joyce e Westerley, bem-vindos, tudo a fazer. E Djin, parceira na vida e na arte, fonte inesgotável de força e inspiração. A toda a equipe do Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência, meu agradecimento e admiração.
André Guerreiro Lopes
O Inferno de Strindberg não é um livro, não é vivido pelo leitor como um livro, mas sim como uma experiência”, escreveu o cineasta Píer Paolo Pasolini. Para mim essa experiência foi corporal, o livro me tomou fisicamente. E virou uma obsessão.
A jornada absolutamente pessoal do autor nas páginas de Inferno é a faísca, a ignição de nossa engrenagem teatral. No palco, a mistura de linguagens, as metamorfoses, os objetos indefinidos, as ações cíclicas, formam um todo, um grande labirinto visual e sonoro que, esperamos, ilumina a beleza, a poesia e o desespero de um momento de suspensão: o artista que abandona sua zona de segurança e se lança ao desconhecido, em uma jornada incerta.
“Tudo envelheceu, desejo tudo ignorar, deixar em suspenso as perguntas e ficar à espera.” escreve Strindberg em determinado momento de sua saga. Ou quando analisa um casulo ao microscópio: “Como é possível? A lagarta morre no casulo e mesmo assim está viva e ressuscita em outra forma, de maior beleza, maior elevação, maior liberdade. Portanto que é a vida, que é a morte? A mesma coisa?“
A analogia do casulo, o ir ao limite da experiência, a coragem de vivenciar a morte (de ideias, paradigmas, certezas) para gerar a metamorfose, não seria uma imagem síntese desta “crise inferno”? Ou da jornada de todo artista verdadeiro?
Parceiros de longa data do estúdio lusco-fusco aqui se reencontram e novas parcerias se formam para esta alquimia coletiva. E não faltam espelhamentos. Fragmentos de Um Sonho, peça que criamos há quase sete anos (e que Strindberg escreve cerca de sete anos após a crise inferno) surge aqui como ruínas, a evocação simultânea de um passado e de um futuro. Em cena também uma homenagem a meus mestres Steven Wasson e Corinne Soum do Theatre de l’Ange Fou, em uma peça corporal que fala de paranóia. Extratos de filmes que dirigi. Fragmentos de outros cenários, recontextualizados. Helena, com sua trajetória singular, parceira poético-cine-teatral. Gregory, colaborador antigo, com sua alquimia sonora única. O talentosíssimo Eduardo, novo velho parceiro. Lazarratto, amigo de tantos encontros artísticos pulsantes, que nos empresta sua luz. Sonia e sua inteligência cênica. Leo, Carlito, Flávio, Rafa, Joyce e Westerley, bem-vindos, tudo a fazer. E Djin, parceira na vida e na arte, fonte inesgotável de força e inspiração. A toda a equipe do Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência, meu agradecimento e admiração.
André Guerreiro Lopes
Fortuna crítica
Espetáculo oferece ao público experiência estética deslumbrante
Utilizando o conceito de arte total como procedimento, o espetáculo "O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência" justapõe elementos visuais, sonoros e textuais com excelência rara.
A montagem dirigida e protagonizada por André Guerreiro Lopes proporciona uma experiência estética ímpar, ao retratar o universo do autor sueco August Strindberg (1849-1912) combinando com mesma potência todos os elementos cênicos disponíveis.
A paranoia de seu romance autobiográfico "Inferno" e o simbolismo de sua peça "O Sonho" são retratados por meio de uma atmosfera onírica, criada a partir de um cenário soturno e um sofisticado desenho de luz.
Existe apuro igual tanto pelos aspectos visuais macro - cenografia, iluminação, projeção de video - quanto pelos micro - a gestualidade milimétrica das mãos de Djin Sganzerla, a expressão enigmática de Eduardo Mossri.
Cada cena forma quadros estilizados independentes.
O figurino de Sonia Ushiyama é elegante e apropriado ao enredo, com casacos acinturados para os atores e vestuário longo para as atrizes. Junto com a maquiagem dark, o figurino compõe o ambiente expressionista da peça.
A trilha sonora é executada ao vivo por Gregory Slivar. À frente de uma parede de luz, que lhe dá um recorte de sombra silhuetado, toca piano, violino e flauta, além de coordenar sons pré-programados em computador.
A concepção de "paisagem sonora" prioriza também a musicalidade ruidosa de diversos objetos espalhados pelo palco.
André Guerreiro conduz com maestria a encenação.
Como ator, invoca as microcenas que vão formando a narrativa fragmentária, doando-se com paixão ao papel (estratégia muitas vezes arriscada no campo da atuação) sem erros. Em outros momentos ele desliza como um bailarino contemporâneo, abusando de movimentos descontínuos a abruptos.
Ao dirigir e atuar simultaneamente, potencializa as camadas de interpretação do espetáculo, já que até mesmo seu personagem ficcional dirige a peça dentro da peça.
A discussão matrimonial entre Djin e Mossri tem intensidade dramática perturbadora, assim como o debate entre professor e aluno.
Helena Ignez faz rápidas aparições com um livro nos braços. Com sua vocalização grave, transita pelo tablado recitando trechos esparsos, ampliando a estranheza que a obra de Strindberg sugere.
A arriscada sobreposição de tantos elementos poderia ruir o sistema cênico proposto, causando superabundância de significantes e significados, não fosse o andamento tranquilo entre as cenas.
Nunca há excessos. Se a ação é tomada por efeitos de luz mirabolantes, a penumbra volta na sequência. Quando o labirinto sonoro ameaça perturbar a compreensão, o ritmo lento ressurge. E a pantomima e o diálogo estão em harmonia. Obra de arte completa, sem ressalvas. Avaliação: ótimo
MARCIO AQUILES, crítica publicada no Jornal Folha de São Paulo.
Entre a Lucidez e o Delírio
Era um daqueles dias em que a existência parecia recortada do contexto a que pertence (se é que pertence a algum contexto). Isso, na verdade, ocorre com alguma frequência para mim. Para você não? Às vezes, tudo se revela desencaixado enquanto eu permaneço sensata, resoluta e centrada. Em outros momentos, perco o passo e a sintonia com o amplo universo ao meu redor; me sinto irregular, turbulenta, diante da organização exterior. E há instantes de puro delírio, em que não tenho certeza sobre de que lado da fronteira estou: se na realidade percebida, ou se naquela inventada.
Era um daqueles dias, portanto. A rua parecia bem mais calma do que de costume; ouvia pássaros por todos os lados. O sol tímido iluminava as pequenas poças na calçada molhada. Cruzei com dois cães, um miúdo e negro, outro grande e quase amarelo, e tive a impressão de ouvir: “Você sempre faz isso. Sempre enrola. Enrola, enrola”. Eu tinha muita pressa, e tudo, o tempo, o vento, o cimento, tudo andava devagar. O que andava? Não havia carros. Os sinais estavam todos verdes. E as poucas pessoas que eu encontrava, nas mesmas calçadas percorridas duas, três, dez vezes, pareciam a mim mesma – mais novas, mais velhas, mais masculinas, mais femininas. Todas muito lentas. Só eu tinha muita pressa. Pressa e a sensação de me alcançar e me perder ininterruptamente. E virava a esquina para chegar na mesma calçada. Duas, três, dez vezes.
Sonho? Inferno?
Talvez, para o dramaturgo sueco August Strindberg (1949-1912), meu relato não seria um desatino. Ele sempre esteve muito próximo desses tênues limites entre o que banalmente chamamos de “normalidade” e “loucura”, “realidade” e “sonho”, “lampejo” e “surto”. Escreveu, entre 1896 e 1897, quando vivia em Paris, Inferno, uma de suas obras mais importantes, misto de ensaio autobiográfico e ficção. Publicado em 1898, o livro trata do período em que o dramaturgo viveu em Paris, imerso num questionamento angustiado e angustiante do mundo e dedicado a desvendar os segredos ocultos da existência por meio da alquimia e outros experimentos.
Em 1901, finalizou a peça O Sonho, cuja forma se assemelha às narrativas oníricas, com saltos temporais, personagens aparentemente incongruentes e mudanças bruscas de ambiente. Inês, filha do deus Indra, desce ao mundo a fim de vivenciar a experiência humana, do casamento à separação e da espera incessante ao eterno recomeço. Durante sua passagem pela Terra, conhece diversos personagens e, com eles, prova situações de desencanto e sofrimento.
Inferno e O Sonho se misturam no espetáculo performático O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência, da Cia. Lusco-Fusco; não necessariamente em termos narrativos literais, mas especialmente na essência dos relatos e na reconstituição das atmosferas. O diretor André Guerreiro Lopes foi além: incorporou as próprias impressões diante das obras de Strindberg. Assim, temos uma peça de tessitura onírica, da qual ora somos parte do sonho de outrem, ora sonhamos esse sonho também, sempre com algum estranhamento e fascínio. Os escritos do dramaturgo sueco hoje suscitam reflexões referentes ao uso intencional e controlado de elementos autobiográficos e psicanalíticos na construção artística (lembrando que Strindberg e o austríaco Sigmund Freud foram contemporâneos, mas não há registros que tenham se conhecido). O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência não passa batido por essas questões – e faz disso um de seus grandes méritos.
Belamente encenado, o espetáculo enche os olhos e conduz o espectador por labirintos da mente (ou da memória? ou da fantasia?), em que fragmentos aparentemente diversos se embaralham. Identificamos o Artista, enredado nas amarras do destino – e no manto de Agnes (uma figura mítica, sonhada, inspirada na Inês, de O Sonho) –, preso inevitavelmente ao eterno recomeço: tudo se parece, tudo se repete, tudo retorna. A Mão Invisível, a Cicerone do Inferno, o incita. Mas o Artista está encarcerado nas ruínas de si mesmo, atado aos abandonos que sofreu e aos que provocou; ele está encarcerado nas ruínas do mundo, um mundo decadente e incompreensível. Só lhe restam a alquimia, o ocultismo, os segredos escondidos. Os sinais difusos do inconsciente, que vêm à tona durante o sono.
Enquanto tateia os mistérios do mundo, o Artista recria realidades. Descobre Agnes, a figura etérea que quer experimentar as delícias e as agruras da humanidade. Descobre um outro personagem, este inspirado no Advogado, de O Sonho, e os apresenta um ao outro. O que diremos da reinvenção de um sonho que tenta imitar a vida? Agnes quer vivenciar o casamento. Ela está confiante: tendo testemunhado inúmeras situações parecidas, julga ter aprendido como driblar as intempéries da vida conjugal. Pobre Agnes: ainda não sabe que estamos todos presos a uma repetição interminável. Pobre Agnes: seria ela o artista quando ingênuo?
Talvez no estudo da morte esteja a saída. A lagarta morre no casulo para ressuscitar numa forma mais elevada, de maior beleza e liberdade. Seria a morte e a vida faces da mesmíssima experiência?
O espetáculo é meticulosamente coreografado. O próprio texto da adaptação reúne as falas e as partituras corporais dos atores. Veja um exemplo de uma cena do Artista: “- queda para trás segurando no joelho; – retorna da queda em escultura fixa; – reconhece o espaço; – tique rápido: olhar para mesa; – oposição: atração mesa x passado; – estrutura/arruma terno (direita para esquerda)”. Ora, isso confere uma qualidade imensa ao trabalho, um refinamento. Uma peça de grandes atuações acontece com atores conscientes dos próprios movimentos e deslocamentos e com movimentos e deslocamentos bem decupados (seja qual o método em que se baseiem). Para isso, a direção igualmente deve ser consciente e precisa.
Assisti à peça duas vezes. Na primeira vez, saí extasiada. Tudo foi perfeito. Soluções cênicas bem sacadas gerando efeitos potentes. Na segunda vez, contudo, já no fim da temporada, houve pequenos deslizes. Senti o elenco mais relaxado (no sentido da precisão), especialmente o André, e nem tudo se encaixou de modo fluido. Contudo, a própria estrutura da peça segurou a oscilação dos atores – e isso graças à sobriedade da partitura física e à direção.
O elenco está ótimo – é sempre um prazer ver Helena Ignez atuando. Djin Sganzerla e Eduardo Mossri cumprem muito bem seus papéis, e André Guerreiro, que, além de dirigir, interpreta o Artista, dá um show de mímica corporal. Especialmente na chamada “cena da paranoia”, uma tentativa de relatar o surto descrito por Strindberg em Inferno, quando André executa a peça “The Chair Piece”, do repertório do norte-americano radicado em Londres Steven Wasson, diretor do Theatre de l’ Ange Fou. Para mim, um dos momentos mais emocionantes do espetáculo.
Tudo é tão bem pensado – do ótimo cenário à luz maravilhosa, o figurino e a maquiagem, os objetos cênicos – para recriar a atmosfera onírica! Gostei bastante também da trilha musical e sonora, executada pelo músico e compositor Gregory Slivar, presente durante todo o tempo em cena (excelente escolha), e acompanhada vez ou outra por André fazendo uso dos apetrechos de alquimista. O palco fica totalmente preenchido e, de tão prenhe (de sentidos, de atmosferas), nos incorpora. Daí a sensação de arrebatamento que o espetáculo provoca. Houve um casamento incrivelmente harmônico entre os fragmentos narrativos e a estética criada.
E, no fim de tudo, o livro se fecha. Nunca é um fim definitivo; afinal, há eterno recomeço… O livro trata da desordem, da grande desordem. Desse caos que mistura dentro e fora, abstrato e concreto, lucidez e delírio – mas tudo, tudo, tudo com uma infinita coerência. Eis a alquimia justa para atravessar o sonho e sobreviver ao inferno (será?).
Maria Fernanda Vomero, crítica publicada no blog Jogo de Cena.
Utilizando o conceito de arte total como procedimento, o espetáculo "O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência" justapõe elementos visuais, sonoros e textuais com excelência rara.
A montagem dirigida e protagonizada por André Guerreiro Lopes proporciona uma experiência estética ímpar, ao retratar o universo do autor sueco August Strindberg (1849-1912) combinando com mesma potência todos os elementos cênicos disponíveis.
A paranoia de seu romance autobiográfico "Inferno" e o simbolismo de sua peça "O Sonho" são retratados por meio de uma atmosfera onírica, criada a partir de um cenário soturno e um sofisticado desenho de luz.
Existe apuro igual tanto pelos aspectos visuais macro - cenografia, iluminação, projeção de video - quanto pelos micro - a gestualidade milimétrica das mãos de Djin Sganzerla, a expressão enigmática de Eduardo Mossri.
Cada cena forma quadros estilizados independentes.
O figurino de Sonia Ushiyama é elegante e apropriado ao enredo, com casacos acinturados para os atores e vestuário longo para as atrizes. Junto com a maquiagem dark, o figurino compõe o ambiente expressionista da peça.
A trilha sonora é executada ao vivo por Gregory Slivar. À frente de uma parede de luz, que lhe dá um recorte de sombra silhuetado, toca piano, violino e flauta, além de coordenar sons pré-programados em computador.
A concepção de "paisagem sonora" prioriza também a musicalidade ruidosa de diversos objetos espalhados pelo palco.
André Guerreiro conduz com maestria a encenação.
Como ator, invoca as microcenas que vão formando a narrativa fragmentária, doando-se com paixão ao papel (estratégia muitas vezes arriscada no campo da atuação) sem erros. Em outros momentos ele desliza como um bailarino contemporâneo, abusando de movimentos descontínuos a abruptos.
Ao dirigir e atuar simultaneamente, potencializa as camadas de interpretação do espetáculo, já que até mesmo seu personagem ficcional dirige a peça dentro da peça.
A discussão matrimonial entre Djin e Mossri tem intensidade dramática perturbadora, assim como o debate entre professor e aluno.
Helena Ignez faz rápidas aparições com um livro nos braços. Com sua vocalização grave, transita pelo tablado recitando trechos esparsos, ampliando a estranheza que a obra de Strindberg sugere.
A arriscada sobreposição de tantos elementos poderia ruir o sistema cênico proposto, causando superabundância de significantes e significados, não fosse o andamento tranquilo entre as cenas.
Nunca há excessos. Se a ação é tomada por efeitos de luz mirabolantes, a penumbra volta na sequência. Quando o labirinto sonoro ameaça perturbar a compreensão, o ritmo lento ressurge. E a pantomima e o diálogo estão em harmonia. Obra de arte completa, sem ressalvas. Avaliação: ótimo
MARCIO AQUILES, crítica publicada no Jornal Folha de São Paulo.
Entre a Lucidez e o Delírio
Era um daqueles dias em que a existência parecia recortada do contexto a que pertence (se é que pertence a algum contexto). Isso, na verdade, ocorre com alguma frequência para mim. Para você não? Às vezes, tudo se revela desencaixado enquanto eu permaneço sensata, resoluta e centrada. Em outros momentos, perco o passo e a sintonia com o amplo universo ao meu redor; me sinto irregular, turbulenta, diante da organização exterior. E há instantes de puro delírio, em que não tenho certeza sobre de que lado da fronteira estou: se na realidade percebida, ou se naquela inventada.
Era um daqueles dias, portanto. A rua parecia bem mais calma do que de costume; ouvia pássaros por todos os lados. O sol tímido iluminava as pequenas poças na calçada molhada. Cruzei com dois cães, um miúdo e negro, outro grande e quase amarelo, e tive a impressão de ouvir: “Você sempre faz isso. Sempre enrola. Enrola, enrola”. Eu tinha muita pressa, e tudo, o tempo, o vento, o cimento, tudo andava devagar. O que andava? Não havia carros. Os sinais estavam todos verdes. E as poucas pessoas que eu encontrava, nas mesmas calçadas percorridas duas, três, dez vezes, pareciam a mim mesma – mais novas, mais velhas, mais masculinas, mais femininas. Todas muito lentas. Só eu tinha muita pressa. Pressa e a sensação de me alcançar e me perder ininterruptamente. E virava a esquina para chegar na mesma calçada. Duas, três, dez vezes.
Sonho? Inferno?
Talvez, para o dramaturgo sueco August Strindberg (1949-1912), meu relato não seria um desatino. Ele sempre esteve muito próximo desses tênues limites entre o que banalmente chamamos de “normalidade” e “loucura”, “realidade” e “sonho”, “lampejo” e “surto”. Escreveu, entre 1896 e 1897, quando vivia em Paris, Inferno, uma de suas obras mais importantes, misto de ensaio autobiográfico e ficção. Publicado em 1898, o livro trata do período em que o dramaturgo viveu em Paris, imerso num questionamento angustiado e angustiante do mundo e dedicado a desvendar os segredos ocultos da existência por meio da alquimia e outros experimentos.
Em 1901, finalizou a peça O Sonho, cuja forma se assemelha às narrativas oníricas, com saltos temporais, personagens aparentemente incongruentes e mudanças bruscas de ambiente. Inês, filha do deus Indra, desce ao mundo a fim de vivenciar a experiência humana, do casamento à separação e da espera incessante ao eterno recomeço. Durante sua passagem pela Terra, conhece diversos personagens e, com eles, prova situações de desencanto e sofrimento.
Inferno e O Sonho se misturam no espetáculo performático O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência, da Cia. Lusco-Fusco; não necessariamente em termos narrativos literais, mas especialmente na essência dos relatos e na reconstituição das atmosferas. O diretor André Guerreiro Lopes foi além: incorporou as próprias impressões diante das obras de Strindberg. Assim, temos uma peça de tessitura onírica, da qual ora somos parte do sonho de outrem, ora sonhamos esse sonho também, sempre com algum estranhamento e fascínio. Os escritos do dramaturgo sueco hoje suscitam reflexões referentes ao uso intencional e controlado de elementos autobiográficos e psicanalíticos na construção artística (lembrando que Strindberg e o austríaco Sigmund Freud foram contemporâneos, mas não há registros que tenham se conhecido). O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência não passa batido por essas questões – e faz disso um de seus grandes méritos.
Belamente encenado, o espetáculo enche os olhos e conduz o espectador por labirintos da mente (ou da memória? ou da fantasia?), em que fragmentos aparentemente diversos se embaralham. Identificamos o Artista, enredado nas amarras do destino – e no manto de Agnes (uma figura mítica, sonhada, inspirada na Inês, de O Sonho) –, preso inevitavelmente ao eterno recomeço: tudo se parece, tudo se repete, tudo retorna. A Mão Invisível, a Cicerone do Inferno, o incita. Mas o Artista está encarcerado nas ruínas de si mesmo, atado aos abandonos que sofreu e aos que provocou; ele está encarcerado nas ruínas do mundo, um mundo decadente e incompreensível. Só lhe restam a alquimia, o ocultismo, os segredos escondidos. Os sinais difusos do inconsciente, que vêm à tona durante o sono.
Enquanto tateia os mistérios do mundo, o Artista recria realidades. Descobre Agnes, a figura etérea que quer experimentar as delícias e as agruras da humanidade. Descobre um outro personagem, este inspirado no Advogado, de O Sonho, e os apresenta um ao outro. O que diremos da reinvenção de um sonho que tenta imitar a vida? Agnes quer vivenciar o casamento. Ela está confiante: tendo testemunhado inúmeras situações parecidas, julga ter aprendido como driblar as intempéries da vida conjugal. Pobre Agnes: ainda não sabe que estamos todos presos a uma repetição interminável. Pobre Agnes: seria ela o artista quando ingênuo?
Talvez no estudo da morte esteja a saída. A lagarta morre no casulo para ressuscitar numa forma mais elevada, de maior beleza e liberdade. Seria a morte e a vida faces da mesmíssima experiência?
O espetáculo é meticulosamente coreografado. O próprio texto da adaptação reúne as falas e as partituras corporais dos atores. Veja um exemplo de uma cena do Artista: “- queda para trás segurando no joelho; – retorna da queda em escultura fixa; – reconhece o espaço; – tique rápido: olhar para mesa; – oposição: atração mesa x passado; – estrutura/arruma terno (direita para esquerda)”. Ora, isso confere uma qualidade imensa ao trabalho, um refinamento. Uma peça de grandes atuações acontece com atores conscientes dos próprios movimentos e deslocamentos e com movimentos e deslocamentos bem decupados (seja qual o método em que se baseiem). Para isso, a direção igualmente deve ser consciente e precisa.
Assisti à peça duas vezes. Na primeira vez, saí extasiada. Tudo foi perfeito. Soluções cênicas bem sacadas gerando efeitos potentes. Na segunda vez, contudo, já no fim da temporada, houve pequenos deslizes. Senti o elenco mais relaxado (no sentido da precisão), especialmente o André, e nem tudo se encaixou de modo fluido. Contudo, a própria estrutura da peça segurou a oscilação dos atores – e isso graças à sobriedade da partitura física e à direção.
O elenco está ótimo – é sempre um prazer ver Helena Ignez atuando. Djin Sganzerla e Eduardo Mossri cumprem muito bem seus papéis, e André Guerreiro, que, além de dirigir, interpreta o Artista, dá um show de mímica corporal. Especialmente na chamada “cena da paranoia”, uma tentativa de relatar o surto descrito por Strindberg em Inferno, quando André executa a peça “The Chair Piece”, do repertório do norte-americano radicado em Londres Steven Wasson, diretor do Theatre de l’ Ange Fou. Para mim, um dos momentos mais emocionantes do espetáculo.
Tudo é tão bem pensado – do ótimo cenário à luz maravilhosa, o figurino e a maquiagem, os objetos cênicos – para recriar a atmosfera onírica! Gostei bastante também da trilha musical e sonora, executada pelo músico e compositor Gregory Slivar, presente durante todo o tempo em cena (excelente escolha), e acompanhada vez ou outra por André fazendo uso dos apetrechos de alquimista. O palco fica totalmente preenchido e, de tão prenhe (de sentidos, de atmosferas), nos incorpora. Daí a sensação de arrebatamento que o espetáculo provoca. Houve um casamento incrivelmente harmônico entre os fragmentos narrativos e a estética criada.
E, no fim de tudo, o livro se fecha. Nunca é um fim definitivo; afinal, há eterno recomeço… O livro trata da desordem, da grande desordem. Desse caos que mistura dentro e fora, abstrato e concreto, lucidez e delírio – mas tudo, tudo, tudo com uma infinita coerência. Eis a alquimia justa para atravessar o sonho e sobreviver ao inferno (será?).
Maria Fernanda Vomero, crítica publicada no blog Jogo de Cena.